O presidente da Associação Médica de Goiás compareceu, no dia 17 de março, a homenagem pelos 100 anos de nascimento do admirado Dr. José Normanha, proferida pela Academia Goiana de Medicina.
Confira na íntegra o discurso do Dr. Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Medicina e diretor da Associação Médica de Goiás.
“No preâmbulo desta locução, peço licença para repetir o que Stefan Zweig, famoso escritor e biógrafo Austríaco, disse sobre Dickens. no seu livro “Dois Mestres”, publicado em 1919.
“Não! Não se deve investigar nos livros, nem tampouco perguntar aos biógrafos quanto Dickens foi amado pelos seus contemporâneos. O amor somente vive e respira através da palavra falada.”
Vou falar o que sei sobre o Dr. José Normanha de Oliveira, pois vivi o seu tempo, fui seu companheiro de tertúlias culturais, viajamos juntos pelos meandros da filosofia maçônica e, permitam-me dizer, porque sei, que ele foi, realmente, amado pelos seus contemporâneos.
Em 1966, quando cheguei à Goiânia na procura de novos horizontes para minha vida profissional (acabava de terminar a Residência Médica em São Paulo), o Sr. Absay Teixeira, pai de Marília, minha futura esposa, deu-me notícias do Dr. José Normanha de Oliveira, especialista em radiologia e possuidor de “aparelhagem moderna”, segundo suas palavras.
Naquela época Goiânia contava cerca de 150.000 habitantes, assistidos por poucos médicos. Os recursos tecnológicos da medicina colocados à disposição daqueles médicos deixavam a desejar; no entanto, o Dr. José Normanha, já se sobressaía pelo seu espírito empreendedor, haja vista o comentário que o Sr. Absay, meu sogro, fez a respeito da sua “modernidade”.
No inicio da minha vida de médico, naqueles anos dourados da Goiânia provinciana, tive a oportunidade de me aproximar de muitos daqueles pioneiros da nossa profissão, um deles foi o Dr. José Normanha, que me foi apresentado pelo Dr. Eduardo Jacobson, proprietário do Hospital Santa Luíza, localizado, então, na esquina da Avenida Goiás com a Avenida Paranaíba.
Quis o destino que nossas vidas, depois daquele encontro, se entrelaçassem em vários episódios (literatura, filosofia maçônica, vida social e principalmente na medicina), quando passei a ser dependente dos seus exames radiológicos para tranquilizar-me nos diagnósticos mais difíceis que enfrentei.
Tornei-me amigo dos seus filhos, meus colegas Drs. João e Leonardo, e, posteriormente, pelo mundo encantado da literatura, aproximei-me, também, da sua filha, a advogada e poetisa maior, Dra. Renata.
Dentre as honrarias que a minha profissão me reservou, foi a de ter sido médico assistente da sua esposa, minha querida e sempre lembrada Da. Bernadete.
Quando tomei posse como acadêmico da nossa Academia Goiana de Letras, observei que, com exceção do seu primeiro ocupante (Cônego José Trindade da Fonseca) todos os demais (Dr. José Peixoto da Silveira e Dr. José Normanha de Oliveira) e atualmente, este que lhes fala, eram médicos.
Lembro-me que no meu discurso de posse assumi, comigo mesmo, o propósito de homenagear o meu amigo e antecessor na Cadeira, em todas as oportunidades acadêmicas que surgissem e esta é uma delas, graças a gentileza da nossa Presidente, poetisa Lêda Selma de Alencar, estou aqui respeitando e porque não dizer, comemorando, o centenário de nascimento do meu Irmão José Normanha de Oliveira.
No ano passado tive a satisfação de escrever a sua biografia no livro patrocinado pela Sicoob – Unicentro Brasileira, “Memórias de nossa gente, Volume II”, diga-se de passagem, o livro teve grande repercussão no meio cultural goiano e na Academia Goiana de Medicina, entidade a que ele, também, pertencia.
Dr. José Normanha de Oliveira nasceu na cidade de Carinhanha, localizada no sudoeste do Estado da Bahia, às margens do rio São Francisco, no dia 21 de abril de 1916. Era filho de João Moreira Normanha e Sra. Maria de Oliveira Moreira, pequenos sitiantes.
O menino José Normanha esteve sempre envolvido com os serviços da fazenda, ajudando ao pai, consoante sua capacidade física, (era muito criança); uma prova desse envolvimento é o fato de ele só ter conseguido terminar o curso primário com a idade entre 11 e 13 anos, talvez o único a ser alfabetizado entre os irmãos.
No seu livro publicado em 2005 “Poeira do Tempo”, Dr. Normanha fala da sua professora do curso primário:
“Do fundo de minhas reminiscências, minha professora, aquela jovem mestra, me veio pelo doce milagre da gratidão; ainda a vejo entre nós, seus alunos, a todos ouvindo, a todos explicando, a todos atendendo, aqui e ali corrigindo uma palavra mal escrita, o modo de ter a mão e o lápis sobre o papel ao escrever e a ler os livros de Olavo Bilac e Coelho Neto, obras primas da literatura escolar primária […] “.
Dr. José Normanha, como vimos, nasceu e passou a maior parte do tempo da sua infância à beira do rio São Francisco e, como toda criança, deve ter pescado, nadado e viajado nos seus barcos a vapor e nas canoas dos ribeirinhos. Tudo isto deixam reminiscências, algumas das quais encontro no seu livro “Pensamentos Vividos”, expressada em texto de lirismo e saudade:
“A recordação mais doce é sempre aquele pequeno momento de felicidade que o mundo ignorou e que é só nosso e só a nós pertence. Tenho pelo rio São Francisco uma simpatia especial. Ali nasci. Ali passei, nas suas margens, a mais doce fase da vida. Em suas águas turvas banhei-me nas noites quentes de verão”.
Terminado o curso primário, o menino Normanha foi enviado para Salvador para continuar seus estudos (cursar o ginasial), onde foi morar na casa do seu padrinho; depois, já com a idade de 18 anos, foi para Belo Horizonte, levado por um seu primo, segundo recomendação do seu pai, onde deveria fazer o curso secundário e, se fosse possível, a Universidade.
Pinço do seu livro “Poeira do Tempo” este pequeno trecho evocativo, segundo penso, daqueles tempos:
“Quando menino aprendemos a construir castelos de areia. Depois, construímos com os sonhos os castelos de nossas ambições … E, assim, nós nos tornamos eternos construtores de falsos castelos que a mão do tempo vai refazendo e o mar da vida vai destruindo”
Normanha foi aprovado no vestibular para o curso de medicina; quando cursava o 3o. ano, ele “encontrou” o único amor da sua vida, a Srta. Bernadete; arrisco-me a afirmar que estes seus versos foram lembranças daquele primeiro e definitivo encontro:
“Tanto me olhaste e me fitaste tanto,
Naquela tarde em que por ti passei,
Que aquele olhar, de misterioso encanto,
Foi chama deste amor … Como te amei!”
No dia 8 de dezembro de 1945, ainda na euforia do fim da segunda guerra mundial, José Normanha formou-se em medicina. Nenhum parente teve condições econômicas de comparecer à sua festa de formatura. Este episódio ele registrou com tintas carregadas de tristeza no seu livro “Pensamentos Vividos”:
“Sozinho, sem ter com quem compartilhar aquela esperada alegria, longe do carinho afetivo dos meus, de quem as dificuldades e as conveniências da vida muito cedo me separaram, confortado apenas com a simpatia carinhosa de algumas palmas discretas e sinceras de meus colegas, eu me convencera de que chegara, enfim, talvez retardatário, ao meu sonhado país de Ítaca” .
Logo após terminar o curso, José Normanha voltou para junto dos seus, pois desejava cumprir a palavra empenhada com o pai e, também, porque desejava exercitar a medicina junto à população carente do agreste. Infelizmente, três meses após seu retorno, seu pai faleceu. Dr. José Normanha tinha que continuar seu trabalho de médico pelos sertões, quase sempre viajando em lombo de cavalos.
Apesar da vida agitada de médico, Dr. José Normanha não olvidava do compromisso que havia feito com a jovem Bernadete, que o esperava; embora ele tivesse a percepção de que se continuasse naquela vida de “samaritano da medicina”, não teria condições de constituir família.
A oportunidade surgiu: teve notícia de que uma “mina de diamantes”, localizada na cidade de Coromandel, no triângulo mineiro, estava precisando de um médico para dar assistência aos garimpeiros, Dr. Normanha não deixou o “cavalo passar arreado”.
Ali, graças à experiência profissional que adquirira naqueles anos que passara no sertão, em poucos meses de labuta, ele conseguiu guardar uma boa quantidade de pedras preciosas; com isto tornava mais fácil realizar a segunda parte do seu plano de vida: casar-se com Bernadete.
Mais uma vez a sorte foi-lhe favorável, um propagandista de laboratório farmacêutico chamou-lhe a atenção sobre a cidade de Goiânia – “onde existia futuro e que valeria a pena ir conhecê-la e recomeçar sua vida de médico, junto com esta informação, o propagandista acrescentou que, em ali chegando, deveria procurar o médico Dr. Eduardo Jacobson que, certamente o ajudaria”.
Dr. José Normanha veio para Goiânia no inicio do ano de 1949, foi amor a primeira vista!
Depois de alguns dias, encontrou-se com o Dr. Aristoclides Teixeira, médico já conceituado na cidade e seu “veterano” na Faculdade em Belo Horizonte e este o apresentou ao Dr. Eduardo Jacobson, na época construindo o Hospital Santa Luíza, na esquina da Avenida Goiás com a Av. Paranaíba. Este encontro selou uma amizade que duraria por toda a vida dos dois.
Aconselhado pelo Dr. Eduardo fez um curso de especialização em radiologia, tornando-se apto a exercer a especialidade e na sua volta, ficou conhecendo outros médicos: Dr. Simão Carneiro, Dr. Bruno Torres e o Dr. Sebastião Faria. Todos eles se tornaram seus grandes amigos.
No dia 28 de setembro, Dr. Normanha e Da. Bernadete se casaram em Belo Horizonte e, logo em seguida, ela o acompanha na nova aventura profissional, estabelecendo-se, definitivamente, em Goiânia, naquela época com uma população estimada em 50.000 habitantes e pouco mais de 20 médicos.
Um ano depois, Dr. Normanha já inaugurava o seu moderno “Instituto de Radiologia e Radioterapia”, localizado na Avenida Goiás; era o primeiro serviço de radiologia e radioterapia de Goiânia com sede própria. Foi naquele Instituto que o pioneiro José Normanha realizou o primeiro tratamento de câncer em Goiás, utilizando-se da radioterapia.
Com o tempo o Instituto Goiano de Radiologia passou a ser uma referência, de excelência, para a medicina goiana.
Dr. José Normanha se atualizava cientificamente, com participação em congressos nacionais da especialidade e não se descuidava da necessária atualização da aparelhagem; além disto o Instituto passou a ser, também, referência para encontro com amigos, como aconteceu em 1960, quando um grupo de pessoas suas amigas ali se reuniu para fundarem um novo clube social, o “Country Clube de Goiás”, do qual ele foi o sócio numero 1.
Nesta mesma clínica ocorreram, como se observa nos registros da maçonaria goiana, reuniões de alguns amigos do Dr. José Normanha, principalmente médicos, (João de Paula T. Filho, José Camilo de Oliveira, Luiz Rassi e Alberto Rassi) para tratarem da fundação de uma nova Loja maçônica em Goiânia, a Aurora de Goiás, ainda hoje funcionando.
Dr. José Normanha participou ativamente dos trabalhos desta Loja Maçônica, tendo sido eleito para o seu cargo mais importante: Venerável da Loja (Presidente) para o período de 1958/1959; quando ele faleceu ostentava o título de “Emérito da Maçonaria Goiana”.
À medida que o tempo passava, José Normanha e Dona Bernadete iam-se entrosando, cada vez mais, com a sociedade goianiense, conhecendo novas pessoas, fazendo novas amizades, enfim, participando da vida social da “sua nova cidade”; costumavam, ele e a esposa Bernadete, reunirem-se com alguma frequência, com visitas mutuas às suas casas, com os amigos médicos Dr. Waldomiro Cruz, José Camilo de Oliveira, Simão Carneiro, Eduardo Jacobson, dentre outros.
Dr. José Normanha era um homem antenado com as reivindicações da sua classe, foi um dos sócios fundadores da Associação Médica de Goiás, tendo exercido o cargo de 1º Secretário da sua primeira Diretoria. Foi, também, um dos fundadores do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (1959), exerceu a 2ª Secretaria da sua 1ª Diretoria e, posteriormente, foi Conselheiro daquela entidade, cargo que ocupou por muitos anos.
A partir da década de 1960, o Dr. José Normanha passou a ser conhecido e, principalmente respeitado, não somente pela sua “expertise” na sua especialidade médica (radiologia) mas, também, pela sua fama de homem culto, estilista da linguagem, pensador com grande conhecimento da filosofia e da literatura, como escritor e poeta.
Tornou-se membro da Academia Goiana de Letras (1987), Sócio Titular da União Brasileira de Escritores – Seção de Goiás, foi um dos fundadores da Academia Goiana de Medicina (1988), , Sócio Honorário do Instituto Mineiro de História, Membro Titular-Fundador da Academia Brasileira de Médicos Escritores, Membro Correspondente da Academia Mineira de Medicina, Membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, Membro Titular-Fundador da Academia Goiana Maçônica de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (1988).
Quis o destino que ele conhecesse em uma das reuniões do IHGG uma figura que mudou sua vida, refiro-me ao filósofo Prof. Isócrates de Oliveira, com quem ele passou a alçar vôos de condor nas discussões filosóficas, tornaram-se almas gêmeas da filosofia em Goiás.
Um dos locais que, com alguma frequência, eu me encontrava com o Dr. Normanha, era o Country Clube de Goiás, sempre debaixo de um guarda-sol, ao redor da piscina; aproximava-me e sempre tínhamos assuntos a discutir: era um comentário sobre um dos seus livros, era sobre as crônicas que eu escrevia para a revista do Clube e, também, sobre a Arte Real (maçonaria), enfim, tertúlias culturais. Sentíamos satisfação com esses encontros!
A partir dos anos de 1990, o Dr. José Normanha diminuiu bastante suas atividades profissionais na medicina; seus dois filhos médicos, João e Leonardo, depois de estágios no exterior, voltaram para Goiânia e passaram a tomar conta da clínica radiológica.
Daí em diante, o Dr. José Normanha passou a se dedicar, com mais tempo, à literatura, especialmente à filosofia; segundo nos conta a Dra. Renata, ele passava horas e horas “escondido” na sua biblioteca, diga-se de passagem, uma “senhora biblioteca”, sozinho, conversando com seus interlocutores preferidos (Sócrates, Platão, Isócrates de Oliveira, Heidegger, Kant e muitos outros).
Foi a partir dessa época que ele passou a publicar seus livros, (total de 15). No dia 21 de abril de 2006, quando ele completou 90 anos de idade, a família fez-lhe uma aconchegante festa, e para aquela oportunidade ele escreveu (como sempre, foi formal) e pronunciou seu último discurso.
Nesse mesmo ano a Assembléia Legislativa do Estado de Goiás outorgou-lhe o Título de Cidadão Goiano, ratificando, historicamente, o título de “Mérito de Goianidade” que a Associação Goiana de Imprensa, já havia lhe outorgado em 2001.
O dia 5 de setembro de 2006 foi um dia difícil e de luto, não só para a comunidade médica, como também para a cultural e filosófica de Goiânia: Dr. José Normanha faleceu.
Seu enterro ocorreu no cemitério Jardim das Palmeiras; fui um dos primeiros a chegar ao seu velório. Chamava a atenção o seu semblante sereno e, sobretudo, elegante, estirado no caixão que o levaria para o Oriente Eterno; não passou despercebido que ele usava alguns paramentos da maçonaria (segundo o Leonardo, seu filho, foi um dos pedidos que ele lhe fizera no leito de morte).
Ao seu lado Da. Bernadete, companheira de uma vida, com o rosto molhado de lágrimas, parecia não acreditar na fatalidade; seus filhos João e Leonardo, sua filha Renata, emocionados, porém serenos, como soe acontecer nestas oportunidades com os descendentes de um homem de espírito claro e nobre coração.
Goiânia, naquele dia, perdia uma das suas maiores expressões do mundo filosófico, a classe médica ficou órfã, a Academia Goiana de Letras ficou sem um dos seus mais importantes quadros.
Convivi o que pude com o Dr. José Normanha, infelizmente nossas vidas de médicos não permitiram que tivéssemos um contubérnio mais estreito, como gostaríamos, no entanto, hauri o máximo que pude dos seus ensinamentos e tenho procurado transmitir aos meus filhos e netos a lição de vida que ele deixou-me como depositário.
Certa feita repeti para ele o que aprendi com nosso irmão da Arte Real, o imortal Goethe:
“Os últimos companheiros de uma longa jornada têm mais coisas a dizer um ao outro”.
NÓS FIZEMOS ISTO!”